mauro cerqueira











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SOL NOCTURNO

202x320cm, 2020-2022










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PUNHO NOS DENTES

202x160cm, 2020-2022










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SORRISO DE OURO

202x160cm, 2020-2022










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AFECTOS

202x160cm, 2020-2022










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FRÁGEIS GESTOS

202x160cm, 2020-2022










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TESOUROS DA NOITE

202x160cm, 2020-2022










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RASGOS NA LUZ

202x160cm, 2020-2022










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LUA EM LÁGRIMAS

202x320cm, 2020-2022










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O BAILE DO TEMPO - DEDICADO A STEPHAN DILLEMUTH

202x160cm, 2020-2022










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SEM TÍTULO

202x160cm, 2020-2022










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DESENHO NO ESCURO

60x50cm, 2020-2022









( Scroll down for english text )

APOCALIPSE EM CÂMARA LENTA.

A exposição O suor da noite reúne diversos trabalhos realizados por Mauro Cerqueira nos últimos três anos. É uma proposta a meio caminho entre pintura, desenho e assemblagem que enfatiza a materialidade dos seus vários componentes. É pintura porque os trabalhos são feitos em telas em branco sobre as quais Cerqueira espalha grossas superfícies de piche, como se fossem impastos de óleo, para depois as aquecer e derreter. É desenho devido à predominância da cor negra, as suas nuances e chiaroscuro — mas também da linha («cicatrizes», nas palavras do artista) que aqui surge como produto de incisões gestuais feitas com objetos cortantes. E é assemblagem, finalmente, porque em todas as obras aparecem objetos encontrados (telemóveis, correntes, cadeados, espelhos, relógios, cabos, livros...), muitos deles metálicos, brilhantes, colados e distribuídos sobre a superfície do alcatrão, que atua simultaneamente como adesivo e contraste.

Uma materialidade semelhante esteve presente na série de trabalhos que Cerqueira apresentou na sua exposição anterior na galeria Nuno Centeno, Desenganar (2019). Nessa exposição a técnica era diferente; cera derretida impregnada com pigmento colorido (fundamentalmente preto) sobre espelhos. O processo foi igualmente trabalhoso e o resultado semelhante, especialmente no que diz respeito à mistura única de paciência e meditação (na aplicação do material base; o meio aglutinante), e de intuição e espontaneidade (nos gestos que faz sobre a superfície, na escolha e colocação dos objetos). Nessa exposição havia uma peça, precisamente intitulada Desenganar (coleção Serralves), que poderá ser considerada, de certa forma, a origem desta nova série. Entre todas as obras dessa exposição, Desenganar era a mais sombria e silenciosa. O espelho mal se reconhecia entre os minúsculos espaços vazios que, como pequenas partículas luminosas espalhadas na superfície, o artista deixou livres no processo de aplicação da cera.

Tal como em Desenganar, a cor negra e a obscuridade são as protagonistas desta nova série. Mas esta é uma obscuridade relativa, porque os gestos ou incisões que o artista faz na superfície permitem-nos vislumbrar ou intuir uma superfície prístina, quase resplandecente, sob a densa camada de piche e objetos encontrados. Este detalhe subtil, como em trabalhos anteriores de Cerqueira, introduz uma dose de esperança e de inocência, de otimismo e luz em obras que, de outra forma, são sombrias, melancólicas, ou mesmo ominosas. Um sentimento que pode bem ser a representação dos tempos em que vivemos; um apocalipse em câmara lenta.

À semelhança do que acontece noutros conjuntos de trabalhos produzidos a partir de 2007, Cerqueira usa como referência o seu entorno imediato — os bairros populares da cidade do Porto. É deles que retira a referência ao alcatrão, assim como os objetos encontrados no mercado negro, vendidos por pequenos criminosos e toxicodependentes — mas o artista consegue ir além dos limites locais por meio de um exercício calculado de abstração. Neste caso, através da revalorização da forma e do tema, característica da pintura monocromática, que são exaltados pela autolimitação dos recursos plásticos.

Deste ponto de vista, as obras da série O suor da noite apresentam um panorama rico em sobreposições de influências e homenagens. A obscuridade como recurso formal e temático e o negro como protagonista das obras tem, sem dúvida, um longo percurso na história da arte. Podemos pensar em gigantes como Rembrandt e Goya, que alcançaram um grau de expressividade sem paralelo nas suas gravuras e pinturas. De facto, eles estiveram entre os primeiros artistas da modernidade a reforçar o conteúdo das suas obras por meio de um uso magistral da abstração e das suas possibilidades no campo plástico. Ou podemos recordar outros autores, mais próximos de nós, como Malevich ou Pollock, aos quais Cerqueira poderá aludir discretamente numa obra que ostenta um emaranhado de cabos pretos e brancos.

Esta relação com Pollock não será assim tão despropositada quando pensamos no conceito de abstração social, que tem sido utilizado recentemente para descrever a obra de pintores como Mark Bradford. No contexto da América do Norte, este conceito tem origem nos quadros All-over da década de 1940, sobre os quais também é possível ver colados todo o tipo de detritos e materiais; pó de tijolo, vidro, limalha de ferro, beatas de cigarro... Já no contexto atual, Cerqueira recorda o impacto causado pela retrospetiva de Steven Parrino no Palais de Tokyo em 2007. Uma referência à qual poderiam ser acrescentados artistas como Ellen Gallagher, com as suas impressionantes pinturas em esmalte negro (Black Paintings, 1998-2000), ou John Miller, que não usou esta cor, mas desenvolveu uma crítica social ácida numa série de pinturas e esculturas (1988-1992), também monocromáticas mas feitas num tom castanho com inconfundíveis conotações escatológicas.

O conceito de «abstração social» (um tipo de obra que parece mais ou menos abstrata, mas cujo processo de produção remete a um contexto social específico) também pode servir de ligação a outra das obras apresentadas nesta exposição: o filme O suor do deserto (2022). Cerqueira entende este filme como uma espécie de «contexto visual» para as pinturas. Nele podemos ver o artista Babi Badalov perambulando pelo Porto, Tânger, Larache, Fez e Paris seguindo os passos dos escritores Jean Genet (1910-1986) e Mohamed Choukri (1935-2003), que entendiam a função social do artista como uma de necessária solidariedade com o lumpemproletariado e os pequenos criminosos; com aqueles que rompem com as normas sociais por pura necessidade de instinto e sobrevivência. Nas palavras de Paul Bowles, «o artista como inimigo da sociedade». O crime, aliás, já tinha aparecido noutras exposições de Cerqueira como Cismadores (MARCO de Vigo, 2015) ou Gatunar (Múrias Centeno, 2014).

Sendo este o elo principal, O suor do deserto oferece toda uma série de imagens expressivas que desenvolvem um discurso narrativo que complementa a abstração e opacidade das «pinturas». Num ambiente sufocante, onde a mistura de exotismo e lixo funciona como uma espécie de cenário surreal no qual desfilam uma série de personagens e situações inéditas (uma dança suicida mostrada no celular, burros procurando comida entre os restos de um aterro sanitário, a cascata de excrementos na praia de Larache...), Badalov viaja noite e dia pelas cidades marroquinas, lendo o poema O Condenado à Morte (1942-45) de Genet, numa busca poética de sentido onde ele é menos esperado: no domínio da periferia e da marginalidade.

Pedro de Llano Neira, setembro de 2022

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English version:



SLOW MOTION APOCALIPSE

The exhibition “O suor da noite” (The Night Sweat) brings together several works by Mauro Cerqueira, created over the last three years. The works combine painting, drawing and assemblage, while emphasising the materiality of their various components. They may be viewed as paintings because they were created on blank canvases upon which Cerqueira has spread thick surfaces of tar, as if it were a thick oil, which he then heated and melted. They are also drawings due to the predominance of the colour black, including its nuances or chiaroscuro effects and the line that results from a series of gestural incisions made with sharp objects, which the artists describes as "scars". Finally, they are assemblages, because they all feature found objects (mobile phones, chains, padlocks, mirrors, watches, cables, books...), many of which are metallic, shiny, glued and distributed over the surface of tar, which simultaneously acts as an adhesive and contrast.

A similar materiality was also evident in the series of works in Cerqueira’s previous exhibition, Desenganar (Undeceive) (2019) presented in the Galeria Nuno Centeno, in which he used a different technique: melted wax impregnated with coloured pigment (primarily black) on mirrors. The process was equally laborious and delivered a similar result, especially in terms of the unique mixture of patience and meditation (in application of the base material; the binding medium), and intuition and spontaneity (in the gestures made on the surface and the choice and placement of objects). In that exhibition there was one work, entitled Desenganar (Undeceive) (Serralves Collection), which to a certain extent could be considered to be the origin of this new series. Desenganar was the darkest and most silent work in this previous exhibition. The mirror was only recognisable via the tiny empty spaces that the artist left free while applying the wax, which resembled small luminous particles scattered on the surface.

As in the case of Desenganar, blackness and obscurity are once again the protagonists of this new series. But the obscurity in question is relative, because the gestures or incisions made by the artist on the surface allow us to glimpse, or intuit, a pristine, almost resplendent, surface beneath the dense layer of tar and found objects. This subtle detail, as in Cerqueira's previous works, introduces a glimmer of hope and innocence, of optimism and light into works that are otherwise dark, melancholic, or even ominous. This sensation perhaps represents the times in which we live: a slow-motion apocalypse.

As in his other works produced from 2007 onwards, Cerqueira uses his immediate surroundings as his main reference — the popular neighbourhoods of the city of Porto. He takes the reference to tar from these surroundings, as well as objects found on the black market, sold by petty criminals and drug addicts. But he manages to go beyond the local limits through a calculated exercise in abstraction, in this case, through revaluation of form and the theme, which provokes self-constraint in terms of the typical plastic resources of monochromatic painting.

From this perspective, the works of the series “O suor da noite” (The Night Sweat) present a rich panorama of overlapping influences and tributes. Obscurity, as a formal and thematic resource and blackness as the key protagonist of the works has undoubtedly a long path in the history of art. We only need to think of great artists such as Rembrandt and Goya, who achieved an unparalleled degree of expressiveness in their prints and paintings. In fact, they were among the first artists of modernity to reinforce the content of their works through a masterful use of abstraction and its plastic possibilities. Or we can recall more recent artists, such as Malevich or Pollock, to which Cerqueira perhaps discreetly alludes in one of his works that features a mesh of black and white cables.

This relationship with Pollock is also comprehensible when we think about the concept of social abstraction, which has recently been used to describe the work of painters such as Mark Bradford. In the North American context, this concept dates back to the all-over paintings of the 1940s, which also feature many kinds of glued materials and debris; brick dust, glass, iron filings, cigarette butts... In the contemporary context, Cerqueira recalls the impact caused by Steven Parrino's retrospective exhibition at the Palais de Tokyo in 2007. Other references include artists such as Ellen Gallagher, with her impressive paintings on black enamel (Black Paintings, 1998-2000), or John Miller, who did not use the colour black, but developed an acidic social critique in a series of paintings and sculptures (1988-1992), also monochromatic but in a brown tone, with unmistakable eschatological connotations.

The concept of “social abstraction” (a type of work that seems more or less abstract, but whose production process refers to a specific social context) can also serve as a link to another of the works shown in this exhibition: the film O suor do deserto (Desert sweat) (2022). Cerqueira cites this film as a kind of “visual context” for his paintings. In it we see the artist Babi Badalov wandering through the streets of Porto, Tangier, Larache, Fez and Paris, following in the footsteps of writers Jean Genet (1910-1986) and Mohamed Choukri (1935-2003), who viewed the artist's social function as a form of solidarity with the lumpenproletariat and with petty criminals; with those who break with social norms out of instinct and the sheer need for survival. In the words of Paul Bowles, “the artist as the enemy of society”. In fact, crime featured in other exhibitions by Cerqueira, such as Cismadores (MARCO de Vigo, 2015) or Gatunar (Múrias Centeno, 2014).

Given that this is the main link, O suor do deserto (Desert sweat) offers a broad series of expressive images that develop a narrative discourse that complements the abstraction and opacity of his “paintings”. The film paints a suffocating environment, in which a mixture of exoticism and rubbish serves as a surreal backdrop to a series of unprecedented situations and characters (a suicidal dance displayed on a mobile phone, donkeys rummaging for food in a rubbish tip, a waterfall of excrement on a beach in Larache...), Badalov travels through Moroccan cities, day and night, reading Genet’s poem Le Condamné a Mort (The Man Condemned to Death) (1942-45), in a poetic search for meaning in the place where, a priori, it is least expected: the world of the periphery and marginality.

Pedro de Llano Neira, setembro de 2022



Galeria Nuno Centeno, Porto, PT 2022